Anarcobel: Belchior e o anarquismo (lista do Zé #47)
Seria o trovador sobralense um anarquista?
O texto a seguir foi escrito durante a pesquisa para a produção de Cangaço Overdrive: Além das raízes, minha nova HQ, que entre muitos temas junta a jornada de Belchior e Anarquismo. O projeto está em campanha no Catarse, apoie nesse link e garanta o seu exemplar.
Embora sempre presente no toca-fitas do carro do meu pai, eu só fui me interessar por Belchior em 2016. Acho que por essa época estava rolando a #voltabelchior, com o Bel enfrentando uma jornada maluca em diversas cidades, vivendo de favor e levando bem a sério essa coisa de fugir dos boletos. Além disso, o álbum Alucinação estava fazendo 40 anos.
Depois de um apagamento gradual do cantor durante os anos 1990, os holofotes musicais foram buscando Belchior de novo, algo que começou a acontecer devagarzinho no início dos anos 2000, com bandas como Los Hermanos explicitando a influência dele na sua música. A fatídica matéria no Fantástico narrando uma caçada ao compositor no seu exílio fez esses holofotes brilharem numa intensidade mais alta do que o Bel gostaria.
Eu dirigia um fusca azul emprestado nesse tempo. O fusquinha tinha o apelido de Dragão Azul e virou até matéria quando meu sogro o usou para contornar o Ceará. Ou seja, era um bom lugar para ouvir o som de um ativista da causa latino-americana. No período em que rodei pelas ruas da cidade onde o Belchior nasceu, coincidentemente a mesma em que eu nasci, escutei alucinadamente o Alucinação.
É um disco tão bom, que é impossível pular uma música sequer, incluindo muitas que todo brasileiro sabe cantar inconscientemente, como “Apenas um rapaz latino americano”, “Como nossos pais”, “Sujeito de sorte” e “A palo seco”.
Mas tem uma que quase nunca é comentada pelas pessoas. Quando ouvi “Como o diabo gosta” pela primeira vez, eu dei um pulo:
“E a única forma que pode ser norma
É nenhuma regra ter
É nunca fazer nada que o mestre mandar
Sempre desobedecer
Nunca reverenciar”
Isso me lembrou MUITO o pensamento anarquista, um tema que sempre me interessou. Os primeiros conceitos de anarquismo surgiram ali pelo século XIX, com pensadores como Proudhon e Bakunin. Os anarquistas estiveram presentes em diversas revoluções sociais nos séculos seguintes.
Foi nos anos 1970, especialmente em movimentos artísticos na Inglaterra, que o anarquismo chegou no mainstream e contaminou diversas bandas punk. Naquela época houve quem usou a anarquia para pregar a autodestruição enquanto vendia camisetas, mas algumas bandas trataram isso de forma séria e verdadeiramente política, das quais eu destaco o Crass.
Sabe quem também estava fazendo música nos anos 1970? Meu conterrâneo aqui de Sobral, Antonio Carlos Belchior, que lançou não apenas o Alucinação, mas outros quatro discos nessa década. E sei que assim falando pensas que esse anarquismo era moda em '76… O fato é que Belchior estava conectado nesse Zeitgeist, com o adicional de nosso país estar vivendo o auge da ditadura militar nessa década.
Seguindo pela discografia do Bel, a gente encontra canções que citam explicitamente o anarquismo. Como em “Extra cool”, do disco Melodrama (1987):
“Tao eterno
Que tudo mais vá pro inferno!
Oh, folia!
Tão moderno
Pierrot, Le Fou! Anarquia!”
Ou ainda “Arte final”, do disco Bahiuno (1993):
"Alguém se atreve a ir comigo
Além do shopping center? Hein? Hein?
Ah! Donde están los estudiantes?
Os rapazes latino-americanos?
Os aventureiros? Os anarquistas? Os artistas?
Os sem-destino? Os rebeldes experimentadores?
Os benditos? Malditos? Os renegados? Os sonhadores?
Esperávamos os alquimistas, e lá vem chegando os bárbaros
Os arrivistas, os consumistas, os mercadores"
Mesmo que a música de Belchior seja aberta a interpretações, é muito claro como esse tom de revolta contra o sistema capitalista está presente em muito momentos em toda a sua discografia, como na clássica “Paralelas”, do disco Coração selvagem:
“E no escritório em que eu trabalho e fico rico, quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor”.
Eu procurei, mas não consegui encontrar citações diretas do Bel a qualquer tipo de anarquismo (porque existem vários). É possível que pessoas mais espertas que eu encontrem isso (e atualizarei esse post se isso acontecer). Mas alguns trechos de entrevistas aproximam muito o cantor desse pensamento. Numa dessas entrevistas, de 1979, Bel teria dito: “(...) Tem governo, eu sou contra. Tem partido, eu sou contra. (...) Nós, os homens desse tempo, estamos humilhados pelas injunções do poder. Eu não quero poder nenhum. O poder é corruptor. Por natureza, o poder é avarento”.
Mas eu adoro mesmo é esse DISPARO do Bel, extraído do livro Belchior: Apenas um rapaz latino-americano: “Eu, por exemplo, acho que para conseguir liberdade, tem que se pulverizar o poder, diminuí-lo ao máximo, ao ponto de todas as pessoas gerirem individualmente as suas vidas e presença no mundo, não precisamos de nenhum chefe de rebanho, mestre, religião. (...) Eu acho muito mais importante cuidar da felicidade das pessoas do que do Produto Interno Bruto”. É quase como se fosse um depoimento de um velho anarquista em Sem deuses, sem mestres, clássica série documental sobre a história do anarquismo. O uso da expressão “chefe de rebanho” é provavelmente uma referência ao pensamento da moral de rebanho de Nietzsche, o crítico do anarquismo mais anarquista que já existiu.
Na vida de Belchior os confrontos foram constantes, assim como a capacidade de contradizer tudo que os outros esperavam dele. Abandonou o convívio familiar para ser um frade capuchinho. Abandonou o mosteiro para ser médico. Abandonou a faculdade de medicina para ser compositor.
Em sua última aventura, Belchior deixou para trás posses e propriedades e se desconectou sem dar explicações de família e amigos. Há quem tente fazer do exílio do Bel uma batalha contra o sistema, que (personificado na grande mídia) perseguiu o bardo cearense com todas as suas garras… Embora seja mais provável que tenha sido mesmo uma tentativa atrapalhada de se isolar, num momento em que ele se sentia esquecido. Ele desafiou grandes pessoas jurídicas, mas acabou prejudicando muitas pessoas físicas no caminho (o que rendeu contas bloqueadas e mandados de prisão por falta de pagamento de pensão).
Essa “fuga” é narrada em detalhes no livro Viver é melhor que sonhar: Os últimos caminhos de Belchior, que me deixou de cara com as situações inacreditáveis dos últimos anos do trovador sobralense, incluindo fugir de hotéis e dormir em bancos de praças com sua companheira Edna.
Depois da morte do cantor em 2017, tudo que se pode falar da relação do Belchior com o anarquismo e ou sobre seu exílio é pura especulação. Eu decidi deixar de lado as polêmicas e guardar na minha memória só as músicas do meu conterrâneo sobralense, tocando em loop no fusquinha azul. A boa luta contra o sistema errado, isso o Bel soube cantar.
gostei demais desse texto! também fui me interessar por Belchior de verdade só depois de adulto, e hoje é provavelmente meu cantor brasileiro preferido. adoro as pequenas relações dele com o anarquismo. ótimo post!
Como o diabo gosta é um paradoxo.
Paradoxo da criança desobediente.
"Não faça o que o mestre mandar", ou seja, desobedeça. Mas se desobedecer, vai estar obedecendo.