Roteirista de HQ é quadrinista? (lista do Zé #48)
Um debate sobre como escrever quadrinhos
Quando eu pensei em escrever esse texto, o objetivo era chegar na resposta para a pergunta: existe um formato padrão de roteiro para histórias em quadrinhos? Obviamente, eu não segui o roteiro (tudunts) e as coisas saíram um pouco de controle. Acabei pensando sobre outra questão: é preciso mesmo que haja um formato padrão?
Se você já estudou roteiro para cinema, vai saber que os profissionais da área usam a tal da formatação Master Scenes. Numa indústria como a cinematográfica, não é incomum alguém escrever um roteiro no Ceará e vender para uma produtora norteamericana. Isso fez com que rapidinho brotassem livros, cursos, consultores e, claro, muitos métodos para se escrever um filme.
Provavelmente é daí que surge a formatação de um dos tipos de roteiro de quadrinhos mais difundidos: o full script. Ele veio também da terra do Tio Sam, um dos primeiros países do mundo a estruturar uma indústria de HQ. Os principais exemplos que você vai encontrar na Internet desse formato, inclusive, são de quadrinhos de super-herói. O “full” já adianta que aqui o roteirista vai descrever, quadro a quadro, tudo que acontece na HQ, para que o desenhista utilize como base nos desenhos. Segue para sua apreciação um trecho de Cangaço Overdrive: Além das raízes (minha nova HQ que COINCIDENTEMENTE 👀 está precisando do seu apoio no Catarse):
Uma vez o roteirista Pablo Casado me disse que odiava essa coisa de escrever quadrinho do jeito que se escreve cinema (“tenho horror de colocar nome de personagem em caixa alta”). O fato é que, sem uma indústria realmente GRANDE de HQ no Brasil, porque definiríamos o jeito de escrever um roteiro como apenas um?
Quando você vai conhecendo gente que faz HQ, vai se dando conta que muita gente nem ao menos ESCREVE roteiro, no sentido de usar PALAVRAS. Tem muito quadrinista que começa seu roteiro direto com desenhos ou com layouts, roughs (ou rafes, como aportugueseram) ou simplesmente esboços.
Sendo os quadrinhos a arte sequencial, feito pelas tais imagens pictóricas dispostas em sequência, como fala Scott McCloud, faz muito sentido que um jeito de começar a contar histórias seja realmente colocando imagens em ordem e vendo o que acontece.
Há, inclusive, quem defenda que esse é o melhor jeito de roteirizar uma HQ. No que mais temos parecido com uma indústria de quadrinhos no Brasil, a Maurício de Sousa Produções, os roteiros são desenhados. Para ser um roteirista da Turma da Mônica você não precisa ser um baita desenhista, mas vai precisar ter algumas noções da coisa. Em algumas oportunidades eu fiz tiras de quadrinhos e quase sempre preferi esboçar a história como desenhos ao invés de escrever a descrição quadro a quadro.
É claro que essa discussão perpassa muitas questões.
Há o caso do desenhista que adapta textos em prosa. Isso me lembra um segundo formato de roteiro do mercado dos Estados Unidos: o Marvel Way. Você deve conhecer a história: com dezenas de quadrinhos para escrever mensalmente, Stan Lee escrevia resumos das revistas, entregava para o desenhista transformar em páginas de quadrinhos e depois recebia essas páginas para incluir os diálogos. Os tais resumos do velhinho que você já deve ter visto em vários filmes da Marvel são muito parecidos com o que no cinema chamam de ARGUMENTO, um resumo com início, meio e fim da história. Esse método do Stan Lee já rendeu várias polêmicas sobre autoria, inclusive.
Eu já vi demais chamarem de roteiristas pessoas que escreveram textos (como esses resumos do Stan Lee ou até mesmo contos) para que desenhistas transformassem em quadrinhos. Será que a gente pode chamar de roteiro algo assim? Eu gosto de pensar que, num caso como esse, um ESCRITOR entregou seu trabalho para um DESENHISTA que assumiu sozinho a função de QUADRINISTA deste projeto. No máximo eu poderia chamar esse escritor de ARGUMENTISTA ou incluir um crédito de “baseado num texto de”.
Falando em quadrinista (sem H), essa é uma palavra bem interessante da nossa língua portuguesa. Eu já participei de papos onde houve a defesa de que quadrinista é quem faz o roteiro E TAMBÉM os desenhos de uma HQ (não apenas uma coisa ou outra). E eu não poderia discordar mais. Não só eu e outros roteiristas pensam diferente, mas também o dicionário Oxford:
Como roteirista, eu não seria considerado autor das minhas HQs? Até pensei em trazer para cá os parágrafos que escrevi para minha dissertação sobre Direitos de Autor e HQs sobre o conceito de AUTOR... Mas vamos nos ater ao básico: é algo tão amplo, que a gente poderia incluir talvez até coloristas e letristas como autores de histórias em quadrinhos (há vários “dependes” envolvidos). Agora imagina quem pensou na história…
A gente acaba contaminado pelo péssimo exemplo norteamericano, onde o roteirista comumente é chamado de WRITER (escritor) e o desenhista de ARTIST (artista). Eu não vou nem gastar mais um parágrafo aqui fazendo a desnecessária defesa de que quem escreve também é artista, porque eu acho que vocês já entenderam o espírito da coisa.
Sim, HQs são uma arte (e não são literatura, viu?). Embora a gente esteja aqui trazendo aspectos industriais e comerciais, eu realmente não curto essa coisa de dizer que quadrinhos tem que ser feito de uma forma específica. Você vai usar métodos e fórmulas, como os que apresentei aqui, se aquilo lhe ajudar a criar sua arte.
Sobre escrever um roteiro, a não ser que a equipe que vai trabalhar com você defina um formato, a coisa depende mais do quanto de controle você quer sobre a história. Roteiros full script dão menos liberdade ao desenhista, mas podem ser uma boa opção quando você trabalha com desenhistas inexperientes ou quando você sente que não vai conseguir dialogar tanto sobre detalhes da história com o restante da equipe. Por outro lado, roteiros menos detalhados abrem possibilidades de surpresas (boas ou ruins) quando você recebe as páginas, então são recomendados quando o desenhista do seu trabalho tem boa experiência com quadrinhos ou quando ele também ajudou a criar os conceitos da história (e por isso vai precisar de menos detalhes de tudo).
Às vezes você nem vai precisar de um roteiro mesmo. Tem desenhistas de quadrinhos que vão simplesmente desenhando a história, sem muito planejamento. Trabalhando sozinhos e sem necessitar que o trabalho passe por nenhuma aprovação de outra pessoa, isso faz total sentido.
Ou seja, vale o que for melhor para que o trabalho flua e aconteça. No fundo, o que importa é encontrar o jeito mais confortável para você e para quem vai trabalhar com você no projeto. Se preciso, crie o seu método. Depois vem aqui me ensinar, porque eu ainda estou encontrando o meu.
Essa questão de autoria nos quadrinhos é .... sei nem opinar. Nos livros ilustrados já é um pega-pra-capar (escrever essa expressão faz ela parecer muito mais violenta). A impressão que tenho é que toda questão autoral vai ter que se redesenhar nos próximos anos. O mundo mudou e o editorial tenta manter suas poltronas de couro a todo custo...